Regina Helena Alves Silva
Parei o mundo e desci... mas tive que voltar
Fiquei um tempo sem escrever. Férias, depois de muitos anos, daquelas de 15 dias na praia, sem fazer nada a não ser me divertir e enlouquecer com meus filhos. Consegui ler dois livros e meio, a outra metade ainda está me aguardando e, se conheço bem minha vida sem férias, esse será apenas um livro-metade.Meus filhos amaram ficar no mar, na areia, na vida boa de água e sol. Eu também... me lembrei de quando isso era possível, justamente quando eu era criança. Fiquei horas olhando pro mar, sem nenhum pra quê e me lembrei que depois que cresci, comecei a trabalhar e a ter férias de gente grande nunca mais descansei nesse período. É sempre um lugar pra ir pra fazer alguma coisa.
Desta vez, fui a um lugar pra não fazer nada, absolutamente nada.As pessoas me perguntavam: “Você vai ficar tanto tempo, vai visitar o quê?”Eu respondia: “Nada”. Insistiam: “Vai a qual praia perto?”Eu respondia: “Nenhuma”.E assim fiz.De vez em quando eu via a vida passar por mim, mas nem liguei.Voltei... aí tudo começou outra vez... Cheguei de volta à terra e encontrei tudo de ponta cabeça, mas mais ou menos na ponta cabeça onde estava quando sai de férias. Onde eu estava parecia inimaginável receber a notícia que recebi neste fim de semana: o filho de uma colega foi assassinado, dizem que foi executado, dizem que foi porque prestou depoimento contra alguns bandidos.Esse fato tem duas coisas absurdas, o fato em si e a forma como fiquei sabendo/não sabendo do que aconteceu. Tudo foi por redes sociais, tudo notícias entrecortadas, todas ninguém sabe muito bem, nem tem certeza. Certeza só que aconteceu e que minha colega deve estar devastada com a dor que uma coisa dessas impõe a uma mãe. Comentei com a Adriana, aquela sobre a qual já escrevi aqui, minha faxineira... Ela me olhou com olhos de fundo e disse: “É assim, Lena, todo dia é assim...”
Esse país tem becos paralelos, portas dimensionais, lugares/não-lugares tão profundos que o que choca a alguns faz parte do mundo cotidiano de outros.Voltei da praia e a mídia enlouquecida dizia de jovens e homens amarrados em postes, uns com cordas, outros com travas de bicicleta. Entrei no facebook e nas notícias online brotavam do fundo do esgoto posts com barbaridades sobre o que se deveria fazer com os seres humanos que apareciam amarrados e travados...Não vou reproduzir o que vi, não tenho estômago para imaginar que existem pessoas que escrevem o que li. Que existem pessoas que pensam esse monte de barbaridades eu sei, mas eu imaginava que mesmo esse tipo de gente soubesse que esses pensamentos deveriam ficar escondidos no fundo mais remoto do cérebro de qualquer ser humano.Talvez eu tenha me enganado e esse tipo de criaturas não faça mesmo parte dessa coisa chamada de gênero humano.
É interessante a gente notar que quanto mais o mundo fica religioso, mais ele se torna intolerante, medíocre, preconceituoso e bárbaro... tem alguma inversão muito grave em tudo isso.Vai vir um monte de gente louca gritando pra mim:“Vai ver quando for assaltada”, “Quando um estuprar sua filha você vai ver”. “Defende esses meninos? Adota um!”, “Leva um desses pra casa”.
Para quem não entendeu ainda, me deixa desenhar: eu adotei um desses, meus filhos vieram da pobreza, da miséria e da violência; eu já fui assaltada várias vezes e em uma delas um ex-aluno colocou uma arma na minha cabeça; e, por fim, o estuprador era um dos que bateram no menino e o prendeu com a trava de bicicleta.Quando um ex-aluno nosso coloca uma arma na nossa cabeça, o que pensar: a primeira coisa que pensei foi: “Onde errei tanto?” Mas, logo depois que ele me viu, disse: “Putz... fessora, desculpe”. Não errei tanto assim como professora, mas tem algo que ficou na minha cabeça martelando. Ahhhh... agora vão vir os outros: “Não use seus filhos para justificar bandidos, eles não eram bandidos”... “pra que falar de um aluno que te assaltou?” Aquele menino travado como bicicleta também não era bandido quando tinha a idade dos meus filhos. Aquele menino não nasceu bandido, nós o tornamos bandido.
Boato de arrastão
Talvez eu tenha que desenhar melhor: Nesta semana surgiu um boato de um arrastão na Avenida Nossa Senhora do Carmo, arrastão que não existiu, mas as pessoas fazem questão de continuar a dizer que aconteceu. As descrições são assustadoras: dezenas de crianças com metralhadoras nas mãos desceram a avenida atirando e assaltando. Fico imaginando de que cabeça doentia sai uma barbaridade dessas. Moro aqui do lado e não aconteceu absolutamente nada disso. Aconteceu um assalto igual a muitos que vêm acontecendo nessa cidade pela inoperância e ineficiência dos nossos governos.
Mas a quem interessa inventar uma coisa dessas?Não sei a quem interessa, mas no nosso caso aqui interessa o que aconteceu dois dias depois.Por volta das 22h chegamos em casa vindos de uma festinha infantil e meus filhos, mortos de cansaço de tanto brincar, não conseguiam dormir por causa do barulho dos helicópteros da polícia em cima da nossa casa. Os helicópteros jogavam holofotes em cima do Morro do Papagaio, uma das nossas mais conhecidas favelas de BH, e quando fui no andar de cima pude ver luzes de carros de polícia ocupando o morro. Meus filhos não dormiam por causa do barulho dos helicópteros, mas os filhos dos meus amigos que moram do outro lado, que moram no morro, não dormiram de medo, de pavor, com os tiros, as portas chutadas, os gritos e a violência que ocupou o lugar onde moram.
Esta é a diferença: meus filhos nasceram do outro lado, mas atravessaram a avenida e vieram morar do lado de cá; os filhos dos meus amigos, que vivem do lado de lá, são marcados a ferro como os filhos do “lado negro da força”. (Eu nunca tinha pensado em quanto essa expressão, criada há tempos, tem sentido literal no Brasil). Um monte de gente acha que o pobre já nasce mal, que quem nasce em condições difíceis nunca vai ser um “homem de bem”...Lamento informar a vocês: embora a grande maioria dessas criaturas que ficam vomitando ódio e intolerância não acredite, todos nós deveríamos nascer iguais – e não estou falando daquela conversa de sermos a imagem e semelhança de ninguém que nunca vimos – mas, um segundo depois, é fundamental nos tornamos diferentes. E o pior não é isso: todos nascemos profundamente desiguais neste e em muitos lugares. E é essa desigualdade que as pessoas que vomitam ódio entendem que precisa continuar a existir. Essas pessoas que acham necessário matar um assaltante para resolver os problemas do país são as mesmas que acham natural que muitos não tenham e não possam ter o mesmo que elas.Essas pessoas acreditam que se “conquistaram” uma maçã, os outros não podem, de maneira nenhuma, conquistá-la também. Por isso elas têm ódio quando algumas políticas sociais tentam distribuir maçãs: elas acham que as maçãs são, e devem continuar sendo, apenas para alguns.Elas têm ódio dos pobres porque eles colocam às claras a necessidade de maçãs para todos.
E mais: os pobres nos ensinam que é fundamental ter maçãs para todos, mas que nem todos precisam querer maçãs. É isso o que deixa esse tipo de gente louca de raiva: “Como assim? Eu conquistei uma maçã e isso me fez diferente, agora vem esse governo e quer dar a mesma maçã pra todos e ainda tem gente que não quer maçã?” É assim que pensa uma elite e uma parte da classe média brasileira. Então, aquele menino travado no chão merece morrer da pior morte possível porque, além de ele roubar nossas maçãs, ele é a prova de que as maçãs não são fundamentais, que a questão da desigualdade não está na distribuição de maçãs, mas no fato de aquele menino existir daquela maneira.
Fico me lembrando do que aconteceu com Pedro durante as férias. Perto da pousada onde estávamos tem um lugar que aluga casas e tem uma infraestrutura comum do tipo: piscina pra adultos e uma pequena pra crianças, área de mesas na sombra, áreas de sofás e poltronas para descanso e uma pequena cozinha para delícias e vinho branco gelado.Depois de alguns dias, a Duda colocou as tais bóias no braço e saiu nadando na piscina de adultos e logo ela começou a pular na piscina gritando: “Deixa eu, deixa eu, já sou grande, sei nadar”...Não precisa dizer que ela virou a atração do lugar, aquele toquinho de gente pulando dentro d’água, sem medo nenhum, e eu e Sílvia loucas, morrendo de medo de ela se afogar. Isso fez com que ela ficasse morrendo de rir da gente. Pedro ficou arrasado. Não conseguia sequer ficar na piscina, segurando apenas nossas mãos. Ele só entrava na água (na piscina ou no mar) agarrado aos nossos pescoços.
Pedro tem medo de tudo. Tem medo do escuro, das portas fechadas, dos barulhos que não conhece, das sombras, da água, do fogo, da área de serviço com a luz desligada, dos barulhos da rua, enfim... tem medo mesmo de tudo.Não sei o que fez com que ele tenha tanto medo, mas ele tem. Por isso, ficou arrasado quando viu a Duda, menor que ele, ter coragem de ficar sozinha na água e ainda por cima pular dentro da piscina.Ele tentava também fazer algo que todos olhassem com a admiração que ele via a Duda causar. Ele pediu que eu ficasse dentro da piscina para segurá-lo quando pulasse. Mas ele só conseguia pular se eu ficasse logo abaixo dele e o segurasse por debaixo dos braços. Quer dizer: ele não conseguia pular.
No último dia, já humilhado pela irmã que tinha ficado de bóia no mar e depois na piscina, ele ficou muito pensativo por um bom tempo. Depois disso, chamou a gente e entrou na piscina devagarzinho e ficou sozinho com as bóias. Ficou apenas alguns segundos, mas tinha uma expressão de tamanha felicidade que todos começaram a gritar que ele tinha conseguido. Tinha um casal de amigos lá com a gente, que veio correndo dar os parabéns pra ele. Animado, saiu da piscina e pediu à Sílvia que ficasse dentro do outro lado, correu e deu um pulo pra dentro d’água sem pedir pra ninguém ficar na borda o segurando.
Naquela hora, ele venceu o medo. A felicidade dele era uma coisa impressionante de ver.Pensei comigo que naquele momento ele entendeu que precisava da gente pra apoiá-lo mas que tem coisas que ele precisa e fará sozinho, que só assim ele ia crescer.No dia dos helicópteros em cima da nossa casa, ele acordou várias vezes: chorou, disse que tinha uma coisa que não sabia o que era que o estava incomodando. Eu disse a ele que estávamos todos juntos e que ele não precisava mais de ter medo dessas coisas porque ele já sabia pular sozinho na piscina. Ele me olhou, deu um sorriso e dormiu.
Pedro ainda é um menino que acha que não tem direito a felicidade, ele destrói todos os brinquedos que ele ganha de quem sabe que o ama.Mas faz uma diferença muito grande pra se constituir para a vida quando uma criança entende e sabe que pode contar com quem a ama e com ela mesma.Aquele menino, preso daquele jeito, jogado daquele jeito, espancado daquele jeito, humilhado daquele jeito, violento daquele jeito, vítima da violência daquele jeito, infeliz em todos os aspectos, nunca pôde nem teve o direito de saber disso.

Regina Helena Alves Silva é professora da UFMG. Graduada em História e Ciências Sociais, com mestrado em Ciência Política e doutorado em História Social. Coordenadora do Centro de Convergência de Novas Mídias-UFMG, atua nas áreas de história social da cultura, comunicação e práticas sociais, novas tecnologias e cultura digital, culturas urbanas e formas de participação social. Atualmente, é mãe em tempo quase integral de Pedro e Maria Eduarda.
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