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Magali Simone de Oliveira

Mariáh, a menina que me fez engolir o tempo

As pétalas são rosadas, não vermelhas. O caule é comprido, magrelo e cheio de espinhos. Qualquer um percebe que se trata de um botão, não de uma rosa. Mas a rosa já faz parte dessa pequena flor que desabrocha no jardim. O perfume é forte, mas, às vezes, a plantinha parece querer voltar a ser semente. Como se pudesse optar por ser semente. Só que não, como ela diz.
Ela não pode mais ser semente, embora esteja muito distante o tempo em que se tornará uma rosa. Sorrio porque, quando observo Mariáh e suas amigas, percebo que o tempo é realmente uma ilusão, uma mentira. Mariáh, a minha Mariáh, não é uma adolescente. A adolescência não existe. É um vácuo de tempo encarnado em uma pessoa.
Porque os adolescentes são ao mesmo tempo bebês que querem colo, crianças que precisam gastar energia, adultos racionais e velhos implicantes. Mariáh é assim. É simultaneamente o bebê sorridente e sedutor de bochechas rosadas e a mulher velha e rabugenta. Não conta as rugas, chora por causa das espinhas. Sonha, mas seus sonhos ficam encarcerados em medos infantis.
E eis que ela chega esbaforida. (Está sempre correndo, como se estivesse atrasada para algum compromisso importante). Está nervosa e agitada. Pergunto o porquê. Ela me diz ter dificuldade em fazer novas amizades.
-Você acredita mãe, que a primeira coisa que a menina disse para mim foi: “Véi, você é BV, (Boca Virgem), não é?”. Mãe, ela só queria saber se eu sou ou não BV!!!!!.
- E você, filha, o que respondeu?
- Eu não respondi. Claro que não respondi. Fiquei calada. Muda. Não acreditei que ela me perguntou uma coisa dessas.
- Mas por que esse choque todo? Você tem vergonha em ser BV?
- Não mãe. Eu não sou BV. Quando eu era bem pequena e tinha três aninhos eu dei um selinho em um menino, lembra? Aquele Mateus que tinha uma pinta preta no olho.
- Mas vale selinho dado aos três anos de idade Mariáh? Você já tem 13 anos.
- Lógico que vale, mãe. Para BV vale. Eu sou é BVL, boca virgem de língua. Não beijei de língua ainda, tá?
- Tá. Mas, e aí? Você ficou muda e depois não conversou mais nada com a menina?
- Não, mãe. Claro que não. Eu fiquei olhando para a cara dela e fui embora sem dizer mais nada.
- Mas, aí, você não falou mais nada com essa menina?
- Eu não, mãe. Imagina! Como assim? A menina nem me conhece e já quer saber se eu sou BV? Por que isso, mãe? Ela quer o quê comigo? Por que ela não deixou para perguntar isso depois de um tempo, depois que a gente já fosse amiga? Que tipo de pessoa é essa que olha na sua cara e pergunta se você é BV ou não é BV?
- Mariáh, você não está sendo um pouco rigorosa demais? A sexualidade é muito importante para os adolescentes, minha filha. É natural que ela queira saber se você é ou não BV.
- Para quê, mãe. Para quê? Se eu for BV e ela não for BVL, vai achar que é superior, que sabe mais que eu, que precisa me ensinar como deixar de ser BV! Eu não preciso que ninguém me ensine a deixar de ser BVL! Eu não quero deixar de ser BVL agora! Quando eu quiser deixar de ser BVL, eu deixo! gritou.
- Tá, Mariáh. Tá. Fica calma.
- Eu estou calma! gritou de novo.
- Mas e se ela não for BVL? E se ela for como você e tiver dado um selinho aos três aninhos?
- Então, ela quer conselho! Ela quer ser amiga de alguém que sabe como deixar de ser BVL! Então eu não posso ser amiga dela! Eu não sei como é deixar de ser BVL! E outra: ela é mal educada! Como assim, nem me conhece e chega do nada e pergunta: “Véi, cê é BV”? Isso é falta de educação! Tem coisa que a gente só pergunta para alguém depois de ter certa intimidade! Eu não conhecia essa menina. Ela não tem o direito de me fazer uma pergunta dessas!
Eu a abraço e passo a mão em seus cabelos. Concordo em silêncio. É difícil lidar com certas coisas. É horrível aceitar as mudanças, as descobertas. Entendo a revolta de Mariáh. Não se deve dar dentes grandes para bocas enormes e assustadoras. Ela está descobrindo a sexualidade. A sexualidade a amedronta. É natural que ela não queira ser mordida assim por esse sexo que a ronda, que a envolve, que está desabrochando dentro dela e por ela é exalado sem que ela sequer se dê conta. É melhor ficar em segurança esperando que as horas passem.
Mas penso eu nessa menina que quer saber se Mariáh é ou não BV ou BVL. Pode ter sido indiscreta, inconveniente, mas que desbravadora! Que coragem! Há o novo, o novo que ela quer conhecer. E lá está esse outro botão desabrochando querendo saber mais sobre o desabrochar. Tão sedenta desse novo ela está, que não segue convenções sociais. Pergunta, sem medo: - “E, aí, véi, você é BV?” E quer saber se é BV, e quer descobrir coisas desse outro botão de rosa que pode ser BV ou não. Para descobrir mais sobre ela própria.
Penso que o tempo realmente não existe. E que seria bom ter esta fome de vida rumo ao desconhecido. Quisera eu me sentir um botão de rosa desabrochando rumo à maturidade. Porque aos 41 anos, a rosa já começa a sentir as pétalas caindo, se abrindo mais do que o necessário, as pontinhas envelhecidas, não tão vermelhas e sedutoras como as de anos, muitos anos antes.
Penso que seria bom ter essa sede de entender o que está acontecendo, o que está por vir. Então, a maturidade seria como a festa da juventude. Imagina chegar perto de uma desconhecida e perguntar: - E, aí, então, como você está lidando com as ruguinhas? E com esse pé de galinha? E com o músculo do tchau que está cada dia mais flácido? O que sente toda vez que descobre cabelos brancos novos? Como é se olhar no espelho e verificar que você está cada dia mais parecida com a sua mãe ou com aquela velha tia da sua infância?
Só que não, como diz Mariáh. As rosas sabem o quão importantes são os silêncios. Sabem que nem todas as perguntas serão respondidas. Nem todas as perguntas podem ser feitas. Há o verniz, a educação, a racionalidade. E essas perguntas são feitas de mim para mim, em silêncio. E a resposta é sempre a mesma: envelhecer é natural. Adolescer é natural. Aos 40 e aos 50 não estamos nós também descobrindo o sexo? Descobrindo como lidar com as inconveniências da vida. Então não sei se a adolescência existe. Sinto-me muito próxima de Mariáh e de sua amiga. Próxima demais. Abraço mais Mariáh e a beijo. Mas sinto que beijo e abraço também sua amiga abelhuda. Sinto que ao abraçá-las, abraço a mim mesma. A uma parte de mim que ficou perdida. A uma parte  de mim que se recusa a morrer.

Magali Simone de Oliveira é mestre em Letras pela UFSJ, jornalista, professora universitária, poeta, contista de textos não publicados, dona de casa e mãe de uma adolescente linda chamada Carolina.

 

* Este é um artigo autoral, que reflete as opiniões do colunista e não do veículo. O website BH DA MENINADA não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações, conceitos ou opiniões do (a) autor (a) ou por eventuais prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso das informações contidas no artigo.

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