Roger Andrade Dutra
Não quero ser o melhor amigo do meu filho
Em termos de clichês, a publicidade é cornucópica. Não discutirei se ela é daninha, ou não; se cria vontades para convertê-las em mercadorias, embelezando-as com o que não têm. No fundo, cada uma dessas possibilidades tem uma quantidade de verdade. Mas o problema é tão mais complexo, que ceder a simplificá-lo é mais irresponsável do que evitar discuti-lo.
Há tempos, planejo escrever sobre o anúncio publicitário de uma impressora, sobre como ele diz, explícita e desavergonhadamente, tudo que as muitas pessoas negam quando investem contra programas sociais, cotas em universidades ou defendem a redução da maioridade penal. Este, aliás, seria o tema da coluna, não tivessem acontecido duas coisas: (a) que eu sucumbisse a uma forte gripe, semana passada e (b) que o dia dos pais aconteça em um domingo precedido por uma sexta em que não haverá coluna. Essa conjunção astral de fatores adia o exame do anúncio publicitário, mais uma vez, e me leva a discutir um pouco de publicidade, mais uma vez e de novo (juntando uns pleonasmos e aliterações, algo assim, sei lá, estou exercitando o privilégio que têm os escritores de não terem que respeitar norma alguma em seus textos, sob o álibi providenciado pela estilística).
O dia das mães tem uma história interessante. Diz-se que uma senhora norte-americana quis instituir um dia anual em homenagem à própria mãe. Nele, festejaria a abnegação, a entrega incondicional e amor ilimitado que tipificam “o ser mãe”. Estou brincando, o que você acaba de ler é o que os anúncios publicitários sobre a segunda data mais lucrativa do comércio repetem todo ano, com quase nenhuma variação. Mas é fato que aquela senhora quis, e conseguiu, decretar a data, bem como é fato que ela tentou aboli-la, anos depois, quando percebeu o que a publicidade havia feito. Este ano, uma marca de perfumes anuncia uma fragrância “criada especialmente para o dia dos pais”. Em desfaçatez, só perde para a marca que contratou a Julia Roberts para fazer o papel de moça bonita.
Não tenho a menor, a mínima, pretensão de escrever um texto moralista, daqueles que a gente ouve nas festas das escolinhas, tão enfáticos quanto inócuos, a nos condenar por termos transformado as nossas relações afetivas em mercadorias (sobre como escolas, públicas ou privadas, vêm transformando o ensino em mercadoria, nem uma palavra, certo?).
Nesse particular, tudo vai permanecer sempre igual. Minto. Vai piorar. Já houve tempo em que os filhos presenteavam suas mães com geladeiras, fogões ou freezers. Hoje, graças aos apelos anticonsumistas, elas recebem CDs do Caetano Veloso ou de padres meia-tigela meia canela. Ou livros não-culinários sobre queijos e furtos (o sujeito preocupado com quem lhe roubou o queijo, enquanto deveria estar desesperado para descobrir quem lhe furtou a inteligência). Há quem presenteie com CD de axé music. O que é um despropósito, pois axé music é um oximoro. Há quem diga que, dos freezers ao Veloso, melhoraram os presentes. De minha parte, constato um vigoroso aperfeiçoamento dos freezers; já o Caetano...
Não sou mãe, nem pãe. Aliás, inexistem ambos, mãi e pãe. Por isso, não me aventurarei a discorrer sobre como os clichês maternos são, ou não, adequados. Mas vou parar um pouquinho para pensar sobre os clichês a respeito de nós, os pais.
Enquanto, com as exceções de praxe, as coitadas das mães recebem sua cota anual de cozinha ou breguice, os pais recebem a sua na forma das meias e das mensagens sobre como devem ser “os melhores amigos dos seus filhos”. De solidariedade filial, então, nem se fala: seu grau dez é representado por um par de chinelos, rapidamente carregados à beira dos sofás. É meio assim: mãe é amor, pai é amizade. Todo ano.
Só um parêntese, antes de prosseguir (dizem que os filhos machistas são criados por mães que também o são; portanto, se isso for verdadeiro, que tipo de mãe é aquela que ganha como presente um livro de auto ajuda?). Fecha parênteses.
Não me incomodam o par de meias ou as gravatas. E não preciso me preocupar com os CDs do Caetano Veloso, meu filho jamais em presentearia com um. Só se fosse em um inimigo oculto. O que me tira do sério é como os anúncios pensam que sabem o que é ou como devem ser as relações afetivas entre pais e filhos, a ponto de sumarizá-las naquelas imagens de camaradagem e companheirismo.
Ora, por mais bela que seja uma relação de amizade - e várias delas são, mesmo - há nelas um componente intrínseco que jamais deveria fazer parte das relações entre pais e filhos. Como muita gente diz jocosamente por aí, ex-esposa, ex-cunhado ou ex-patrão, são para sempre. Obviamente, são “ex” porque, tendo sido por algum tempo, provavelmente nunca mais voltarão a sê-lo: a eternidade do laço rompido face à fragilidade do laço construído.
Mas, diriam alguns, há ex-filhos. Concordo, em parte. Há gente por aí que não honra aquilo que seus pais e mães lhes ofereceram. Há gente (gente?) que abandona os pais envelhecidos, tratando-os como vivos-mortos, apenas porque eles não são capazes de lhes reconhecer. O mundo não é justo e esta talvez seja a tragédia de cada um. Talvez, no futuro, o filho que abandonou seu pai ou mãe seja acometido da mesma doença e aliene-se de si mesmo. Quem sabe, pois não há uma regra, ele acabe por ser bem tratado por seus filhos e netos. Ganhará dos filhos o que negou aos seus pais. Mas sua história com seus pais envelhecidos não lhe terá trazido a certeza a respeito do próprio futuro. Por isso, nos breves momentos que separam a consciência de si que se esvai da alienação completa de si, quando for sua a vez de ser o vivo-morto desmemoriado, ele viverá o drama de não saber ao certo se será bem tratado ou totalmente abandonado. Nem sempre o mundo é injusto.
Da publicidade, fico com as meias ou um CD dos Kings of Convenience e dispenso as imagens sobre como é o modo correto de ser pai. Tal como escrevi em minha primeira coluna, ser pai (ou mãe) não é uma certeza biológica. Só a nossa vontade o realiza. É um laço construído, com a única diferença de que esperamos que ele seja inquebrável. Há ex-amigos. Não há ex-filhos ou ex-pais. Então, o que sobressai disso tudo é que os pais não devemos, penso eu, imaginar nossos filhos como amigos, a não ser que concebamos que eles podem vir a ser, algum dia, nossos ex-filhos.
P.S.: estou bem de meias, e já temos um CD do Kings of Convenience (eu pego emprestado); melhor procurar outra coisa.

Roger Andrade Dutra é professor do CEFET-MG. É graduado em História pela UFMG, Doutor e Mestre em História Social, pela PUC-SP e pai do Lucas Cosendey, não necessariamente nessa ordem. É especializado em filosofia da tecnologia e das tecnociências, sobretudo em temas relacionados às biotecnologias e às novas tecnologias de informação e comunicação; pesquisa, ainda, sobre políticas públicas de cultura as diversas relações entre política, cultura e tecnologia.
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