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Roger Andrade Dutra

Menor auxiliar de serviços gerais

Como a coluna deveria próxima ao dia das crianças, desloquei levemente o ponto de vista. Em vez de escrever sobre as recordações da infância do meu filho, contarei um pouco das lembranças sobre a minha. Ou, pelo menos, o que dela restou em na memória.
Espero não dizer nada daquelas coisas meio piegas, sobre como o dia das crianças é mais uma das tantas datas comemorativas sequestradas pelo comércio e pelo consumismo etc. etc. etc.
Tornou-se piegas não porque o tal sequestro seja falso. Não é. O problema é que já nos habituamos ao cárcere público-privado ao ponto de desenvolvermos uma espécie de síndrome de estocolmo em relação ao consumismo. Como toda metáfora, a do sequestro pelo consumo não é completa. Falta a polícia, por exemplo. E, bem, com as polícias que temos – violentas, especialistas em vandalização de cidadania e infração de todos os direitos e garantias individuais – é até melhor que inexistam na metáfora. Mas já me dispersei.
Não há a polícia como também não há quem nos pague o resgate. Alimentamos desprezo feriado ao sequestrador, enquanto nosso amor é manifestado diariamente. Como na síndrome, abundam os momentos em que a porta está aberta e o sequestrador já não vigia ininterruptamente porque confia em nossa submissão voluntária.
É uma relação patológica. Porque todos sabemos que é mais ou menos assim, lamentamos anualmente, em bloco. E nunca mudamos nada. Disse que esperava não cair no pieguismo. Não apenas caí: mergulhei fundo. Deixo, como registro de minha própria acrasia.
Vivi uma infância bastante pobre. Estávamos no borde que separa a classe D4 da D3. Mas, acho, não corríamos o risco de despencar irremediavelmente para a classe E. Ou seja, jamais fomos miseráveis. O que só e bom de constatar quando se sabe que quem sobreviva ainda pior do que nós.
O Atari, o videogame, é meu contemporâneo. Nunca joguei, vi algumas vezes de longe. Estava tão fora das possibilidades que, do que me lembro, sequer o desejei. Meus sonhos de consumo resumiam-se a um daqueles videocassetes “panasonic” que importávamos do Paraguai. Tanto o videogame como o videocassete (sharp...) só viemos a ter quando eu passava dos dezoito anos. O videocassete adquiri em um sistema nacional de consórcio! Claro, nunca foi sorteado nem meus lances saíram vencedores. Quarenta e oito meses depois, brilhava na copa da casa. Sobre uma cadeira, porque esquecemos de comprar uma mesa adequada.
Não tivemos aquelas benesses que a ditadura militar providenciou às classes médias.  Elas paravam lá em cima, entre o fim da classe B e o extremo inferior da classe C. Eram coisas tais como as taxas de juros que o BNH, o Banco Nacional da Habitação, cobrava na aquisição de um imóvel. Não eram juros de pai para filho, não. Eram mais generosos: algo como taxas de ditador para classes alienadas.
No espírito daquele paternalismo político ditatorial, as “cotas” nas décadas de 1970 e 1980 eram representadas por “bolsas de estudo” que os eleitores menos afortunados mendigavam junto aos gabinetes de parlamentares. Afinal, era uma ditadura com casas legislativas. Os eleitores mais afortunados não precisavam mendigar: ganhavam as bolsas antes dos mais pobres e o que restava a pagar era – era nada, é ainda – generosa e anualmente abatível do imposto de renda. Me acostumei a dizer que as classes médias brasileiras são a continuação da aristocracia por outros meios: sobrevivem sobre uma enorme montanha de privilégios que tratam como se direito de sangue fosse.
[Para deixar bem claro, porque atualmente até ser irônico ficou perigoso: sou radicalmente favorável às cotas tais como elas existem agora.]
Se falo tanto desse corte psíquico classe-médio é porque ele foi – ainda é – construído ao custo, entre outras coisas, das infâncias dos muito mais pobres. Daí que uma coisa é falar sobre o consumismo da criança bem nutrida, daquela que fantasia sobre as escolhas que pode fazer no seu dia. Outra, gigantescamente diferente, é deblaterar contra o consumismo da criança que fantasia sobre tudo que ela sabe que é inalcançável.
[Há uma espécie de ciclo natural que a criança mais pobre não completa, ou completa diferente e cruelmente. Quando muito pequenas, o inalcançável, para todas elas, é o que está muito alto; basta crescer, digamos assim, e está resolvido. Para a criança muito pobre, crescer traz à sua altura o lugar antes inacessível; ele, todavia, permanece vazio.]
Tive a sorte e o azar de estudar em uma escola particular, mediante uma dessas bolsas de estudos. A própria escola concedeu o benefício. Digo sorte, porque as escolas públicas viviam o auge do período em que a ditadura fazia o impossível para acabar, qualitativamente, com elas.
Meus pais. Minha mãe é a famosa dona-de-casa. Perguntavam todos os formulários:  profissão? E a resposta: do lar. Até hoje, desentendo: por que diabos, se até os malditos formulários reconheciam que se trata de uma profissão, todas elas não têm os mesmos direitos de qualquer profissional do trabalho. Aí, me lembro das “filhas solteiras” de militares e suas pensões vitalícias (famosa atriz, filha de militar, intelectualóide bissexta, cultiva desde sempre sua solteirice). Está certo, não podíamos deixar essas tristes figuras desamparadas na segunda, na terceira e na quarta idades, não é mesmo?
Meu pai, era um garçom. Maitre-hôtel. Profissional sempre requisitado, tanto quanto era espezinhado pelos tantos privilegiados aos quais serviu quase toda a vida. Anos mais tarde, seu neto, meu filho, deu na telha de trabalhar em afamado café belorizontino,  um que tem suas paredes decoradas com muitos livros. Descobriu, na prática profissional, e para orgulho familiar, como se materializa o desejo de aristocracia que distingue nossas classes médias.
Pois bem. Foi o enorme esforço de meus pais o que me permitiu o privilégio de frequentar a tal escola particular. E minha sorte foi ter mãe e pai que se superaram na arte de transpor as barreiras que a nossa sociedade constrói para manter estáveis as fronteiras que separam as classes sociais brasileiras. Aliás, a nova moda que os deslumbrados tecnológicos cultuam é a tal “inovação”. Soubessem o mínimo de história, encontrariam uma vigorosa mentalidade inovadora na míriade de soluções de tecnologia social (outra moda) que as classes médias desenvolveram para manter inabalável o alicerce feito de pobres e miseráveis sobre o qual caminham diariamente. Pena que não há terremotos no Brasil. Desconfio que esse chão-alicerce é resistente a  abalos sísmicos de qualquer magnitude.
Mas foi um azar também porque eu era um dos poucos garotos muito pobres convivendo com a horda de crianças e adolescentes classe C e B. Hoje, eu os descreveria como se se imaginassem pertencendo ao panteão das divindades gregas. Classe média era pouco para eles. Estudar em uma escola particular nessas condições pode ser resumido e compreendido no simples fato de que você é cotidianamente discriminado porque não pode comprar lanches na cantina da escola. Porque leva de casa, precisa encontrar na hora do recreio o lugar mais recôndito, o mais escondido do pátio da escola. Digamos, em baixo da copa de uma árvore baixa. Ali você pode matar a vergonha  a fome em paz. Felizmente, nunca tomei ódio pelo chá de erva-cidreira com bolo. Tomei ódio por qualquer tipo de preconceito.
Por outro lado, sempre tive a mim mesmo como uma pessoa branca. Era a cor da pele que eu enxergava. Em mim, tudo que não toma sol é muito branco. Como não sou caucasiano, já fui “visto pelos olhos de outros” de muitas maneiras. Sou branco não-caucasiano e meu cabelo é bem crespo (outra de minhas sortes foi nunca, jamais, em tempo algum, ter ouvido de meus pais a expressão pejorativa “cabelo ruim”; e, também por isso eu agradeço). Todavia, mais de um militante de movimento negro já me recriminou publicamente pelo fato de eu não ter tido a “coragem de assumir minha negritude”.
É engraçado relembrar isso porque, quando criança, frustrei-me tentando levar cultivar uma cabeleira estilo black power. Há uma foto 3x4 na minha Carteira de Trabalho (emitida quando eu contava entre 12 e 13 anos) que documenta essa infâmia. Ficou muito, muito, muito feio. Só não posso dizer que era mais feia do que a fome já que, como contei acima, éramos muito pobres, mas nunca fomos miseráveis e nunca passamos fome. Naquela época, desisti do black power por mera comodidade: cortar é  mais fácil.
Falando em Carteira de Trabalho, comecei a trabalhar quando tinha entre 13 e 14 anos de idade. A escola em que estudei me enviou, depois que eu pedi, para um teste de trabalho no Banco do Brasil. Fui aprovado, apesar do black power. Era um MASG. Menor Auxiliar de Serviços Gerais. Envergava diariamente um uniforme de tergal azul-sei-lá-qual-só-sei-que-era-feio. E esse longo preâmbulo foi para chegar até aqui: nesse lugar, de todos os preconceitos que conheci, o que me marcou no fim da infância foi cometido por um adulto, escriturário daquela joça daquele lugar de trabalho.
Era um dia de trabalho como qualquer outro. Havia uma pilha de três pesados pacotes de papéis, embrulhados em plástico em cima de um pequeno armário, pouco mais alto do que eu. Precisava retirar o que estava na base da pilha. Quando comecei a puxar, os dois de cima começaram a cair sobre mim. Empurrei de volta o da base, criando um movimento que ao mesmo tempo o recolocou no lugar e fez cair nos meus braços os dois de cima. Evitei um pequeno e insignificante acidente. Um dos subchefes da seção estava  logo atrás de mim. Observou tudo e disse em seguida: “ué, até que você não é assim tãããoooo burro como parece...”.
Quebro outra promessa, e falo de mim como pai. Meu filho teve que aguentar em sua infância um pai que pediu demissão do Banco do Brasil para ficar desempregado, estudando mestrado (e depois doutorado) em história. Um ano após o desemprego, recebia bolsa de estudos que equivalia a menos de um terço do salário abandonado voluntariamente. Não é fácil explicar esse tipo de opção. Nos agradecimentos da minha dissertação de mestrado, que dediquei a ele, escrevi: “Ao Lucas, quem mais de perto suportou as idiossincrasias do pai, quem mais sabe o longo tempo que se leva para escrever uma dissertação e o quanto ela pode ocupar nossas vidas. Foi o primeiro revisor desta dissertação, quando pacientemente se sentou à frente da tela do computador e, em vez de aproveitar o tempo para os seus joguinhos, se pôs a corrigir os vários erros ortográficos que ia encontrando ao longo de um texto “esquisito”.
Anos mais tarde, a dedicatória que veio na Tese de Doutorado cravou: “Para Lucas, a quem vejo com satisfação descobrir pouco a pouco o valor do conhecimento”.
Bem, se eu devo reconhecer que o dia das crianças tornou-se uma data consumista, me parece que, independentemente do que venha a ser comprado nas datas comemorativas, o melhor que os pais devemos fazer para atenuá-lo é fazer o máximo para legar aos filhos coisas que ninguém pode tirar deles: um caráter tolerante e atento a afastar qualquer tipo de preconceito e uma predileção pelo conhecimento são, em minha opinião, bons exemplos.
Só termino lembrando que há, (a) conhecimentos consumistas e (b) caráteres tolerantes que, de tanto tolerar, toleram qualquer coisa e preconceitos mutantes. O rol das imbecilidades contemporâneas nesse particular é imenso. Não ensine a seu filho sobre como “gerir sua carreira”. Não diga a ele que deve ser “proativo”. Mais tarde, se ele consultar um dicionário, descobrirá que seu pai lhe ensinava palavras sem saber direito o que significavam. Cursinho de inglês não é conhecimento, é instrumento. E o valor do verdadeiro conhecimento reside em um fato muito simples: não serve para nada, não é aplicável, vendável, utilizável ou consumível.
Feliz ano das crianças.

Roger Andrade Dutra é professor do CEFET-MG. É graduado em História pela UFMG, Doutor e Mestre em História Social, pela PUC-SP e pai do Lucas Cosendey, não necessariamente nessa ordem. É especializado em filosofia da tecnologia e das tecnociências, sobretudo em temas relacionados às biotecnologias e às novas tecnologias de informação e comunicação; pesquisa, ainda, sobre políticas públicas de cultura as diversas relações entre política, cultura e tecnologia.

* Este é um artigo autoral, que reflete as opiniões do colunista e não do veículo. O website BH DA MENINADA não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações, conceitos ou opiniões do (a) autor (a) ou por eventuais prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso das informações contidas no artigo.

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