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Magali Simone de Oliveira

Ninguém é só um nerd

Antes, entender o mundo era fácil. Muito fácil. Aos três anos, Mariáh pegava a boneca nova, arrancava a cabeça, as roupas e ia brincar de reproduzir sua forma de enxergar o mundo. Ora aquele corpo de plástico descabeçado era a mãe, ora era a menina levada, ora a princesa, o príncipe, ou o fantasma. Mas sempre um só personagem.
E do alto de sua tenra infância, ela representava cada um dos personagens que supostamente povoariam o mundo. Fazia as vozes diferentes de cada um. Por isso, às vezes, os bonecos tinham uma vozinha fina, muito fina. Em outros momentos, os sem cabeça “falavam” com o timbre grave e sepulcral que só os vilões muito maus da Disney conseguem ter.
No mundo maravilhoso de Mariáh, todos eram muito maus ou muito bons. Não havia meio termo, complicação, erros de avaliação, dúvidas, incertezas ou inseguranças. Todos eram os personagens que se diziam ser. Sendo assim, não havia decepção. Não havia medo ou insegurança. Todos agiam como deviam agir. 
Hoje, não. Ela tem uma mecha colorida nos cabelos, mas em vez de descolada se define como uma pessoa que “parece ser nerd. Só que não”. Embora admita pensar como nerd, reconheça falar e se vestir como nerd, até agora Mariáh nunca admitiu ser nerd. Ser nerd não é tudo para ela. Ela diz ser mais do que isso.
– Nem brinca com isso, mãe! Eu não sou nerd! Não é porque uso óculos, me visto como nerd, falo como nerd e pareço ser nerd que sou nerd, entendeu? Olha só: se você me chamar de nerd, vou dizer que você faz bullying comigo! Você devia dar graças a Deus de eu gostar de ler, de ter essa vontade de saber tudo sobre Roma, Grécia, Egito e Idade Média! Imagina se eu gostasse de funk e saísse vestida de cachorra por aí!
Concordei. Prefiro minha filha nessa versão “quase nerd”! Acredito ser mais confortável e mais seguro vê-la tentar compreender o mundo juntando as peças de quebra-cabeça traçado pelos personagens dos livros que aprendeu a amar, a me deparar com ela enfrentando, aos 13 anos, situações do mundo real, muito avançadas para a idade dela!
Lendo os romances da adolescência de Mariáh, descobri que os deuses gregos andam deixando marcas em seus filhos meio-sangue pelo mundo! No meio do caminho, sem ser crianças ou adultos, todo adolescente é semi-mortal. E eu os invejo por isso.
De acordo com Rick Riordan, autor da saga de Percy Jackson, qualquer adolescente disléxico, com problemas de atenção e que tenha dificuldade em “encontrar sua turma” pode, na verdade, ser filho de um deus grego.
Por exemplo, se for filho de Atenas carregará consigo a sabedoria dessa deusa; ou a esperteza de Hermes se for herdeiro do deus das viagens e dos ladrões; ou de Ares, o deus da guerra, caso demonstre ter a estratégia e a presteza dos guerreiros divinos.
Em busca de respostas para entender o mundo, Mariáh procura rastros desses deuses em seus colegas. Os mais inteligentes podem ser filhos de Atena, os mais agressivos, filhos de Ares, os mais vaidosos, de Afrodite. Tal olhar a ajuda a entender o universo, pois, frequentemente, os deuses distribuem mais de uma bênção para um mortal.
Então, já aos 13 anos, percebeu que ninguém é só uma coisa. Já sabe que por mais que pareça nerd, fale como nerd, vista como nerd e pense como nerd, ela sempre será mais do que uma nerd. Os livros a fizeram entender que ninguém é só bonito, só sábio ou só briguento.
Os rótulos dos deuses não servem para nós normais. Neste “universo best-seller teen” as pessoas não se enquadram em rótulos, embora eu conheça muitas mulheres da vida real que insistam em querer ser só boas profissionais, só boas mães, só boas donas de casa, só bonitas, só perfeitas.
Só que não. Ninguém é só uma coisa. Quantas imperfeições são necessárias para se elaborar uma perfeição? De quantos erros se faz um acerto? Por meio das “filosofices” de Mariáh e de seus heróis fictícios, percebi que é simplesmente burrice querer ser só uma coisa. Por muitos anos, restringi meus sonhos à busca do aprimoramento profissional. Mas me arrependi há algum tempo e hoje luto para deixar de ser como as bonecas sem cabeça de minha filha. Não quero mais ter uma face só.
No meu universo, um cachimbo não é só um cachimbo. Hoje, sob as bênçãos e maldições dos deuses, inseguramente decidida, caminho com passos trôpegos em direção aos meus sonhos. Ando sempre, sem parar nunca em direção aos meus desejos. Mesmo que, por vezes, me pegue andando em círculos, dançando como se bêbada estivesse.

Magali Simone de Oliveira é mestre em Letras pela UFSJ, jornalista, professora universitária, poeta, contista de textos não publicados, dona de casa e mãe de uma adolescente linda chamada Carolina.

 

* Este é um artigo autoral, que reflete as opiniões do colunista e não do veículo. O website BH DA MENINADA não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações, conceitos ou opiniões do (a) autor (a) ou por eventuais prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso das informações contidas no artigo.

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