Betzaida Tavares
Três lembranças avulsas e o jovem preso ao poste
Três lembranças avulsas
I -
No colégio em que estudei era comum sairmos durante as aulas de Educação Física para fazer atividades no Campo do Lazer. Aquele que hoje virou um shopping de luxo. Caminhávamos dois ou três quarteirões, um bando de meninos conduzidos por professores animados, para brincar ali, um espaço que, diferente do colégio, era para todos.
Um dia, quando voltávamos do passeio, alguns meninos de rua, que nós chamávamos de pivetes, começaram a mexer com a gente. Corriam atrás, gritavam. No fundo, só queriam se divertir com a cara de medo daquelas crianças apavoradas.
Apavorada mesmo eu fiquei com o que aconteceu depois. Três professores pegaram os garotos, levaram-nos à força para dentro da escola e se fecharam com eles numa salinha, conhecida como “Departamento de Educação Física”. Lembro-me de um dos professores indo até a quadra para pegar um pedaço de madeira. Naquele dia, descobri que os nossos educadores, que nunca haviam erguido a mão para nós, poderiam ser terrivelmente perigosos. Comecei a ter medo deles.
II -
Foi na mesma escola, mas eu já estava com quinze anos. No horário de saída, um mendigo bêbado parou na porta e começou a xingar e gritar impropérios para todos que passavam: professores, funcionários, adolescentes, crianças, pais e mães. Assustados, os adultos julgaram que ele representava uma ameaça muito grande e decidiram chamar a polícia. Ele não se intimidou e jogou contra os policiais os mesmos palavrões que vinha proferindo no seu inofensivo e aleatório discurso. Os policiais acharam que os palavrões eram ameaçadores, piores que bomba de gás lacrimogênio, bala de borracha e cassetetes. Então, amarraram o mendigo feito um bicho selvagem, deixaram-no imóvel e o meteram num camburão. Ao sair, mães e pais aliviados aplaudiram.
Naquele dia não tive medo. Tive raiva. Raiva da polícia, raiva das mães e dos pais idiotas. E principalmente, tive raiva de mim mesma porque tudo o que consegui dizer foi: “Que é isso gente? Isso é covardia!”.
III -
Eu tinha onze anos e era época de provas. Isso significava terminar de resolver as questões o mais rápido possível e sair da sala. Depois, podíamos fazer qualquer coisa: perambular pelo pátio, pelas ruas, voltar para a casa... Naquela época a escola não tinha tanto controle nem responsabilidade sobre o que os alunos fariam depois das provas, ainda que estivessem no horário de aulas.
Junto com aquela que era minha amiguinha inseparável – tão inseparável que a amizade existe até hoje e está perto de completar trinta anos – comecei a andar pelas ruas em busca de qualquer coisa para fazer. Fomos ao Campo do Lazer, à praça da Assembleia, entramos em lanchonetes e papelarias. Por fim, resolvemos entrar em um CB – ou Casas da Banha – uma antiga rede de supermercados da cidade.
Percorremos as prateleiras onde tudo era muito atrativo: papéis de carta, cadernos, iogurtes e... doces! Um corredor inteiro de chocolates, balas e bombons. Não demorou muito para termos a brilhante ideia de enfiar nos bolsos algumas amostras daquelas guloseimas. Pouco espertas e nada discretas, despertamos a atenção dos seguranças que nos interceptaram na saída e nos levaram até uma salinha. Nunca em minha vida senti tanto pavor. Seguraram com força o nosso braço, fizeram muito terrorismo e revistaram-nos para ver se não havíamos roubado mais nada. Na “revista”, encontraram uma carteirinha que, sei lá por qual razão estava no meu bolso: “Clube dos Oficiais da Polícia Militar de Minas Gerais”.
– Seu pai é militar? – um deles perguntou.
Trêmula, expliquei que não, que eu era da equipe de natação do Clube dos Oficiais e por isso tinha aquela carteira. Pelo sim e pelo não, resolveram liberar as meliantes.
O jovem preso ao poste
A história do CB foi seguramente a mais traumática que vivi em minha infância. Chegava a tremer e suar frio ao passar na porta de qualquer supermercado desta rede e, intimamente, comemorei quando, três anos depois, a rede faliu. Passei meses sem dormir direito e tive pesadelos durante mais de um ano. Na rua, ao ver qualquer pessoa que julgasse ter as feições parecidas com a de um dos seguranças, entrava em pânico. Durante quinze anos nunca tive coragem de comentar com ninguém esta história, nem mesmo com a amiga que estava comigo na ocasião. Até hoje, sinto desconforto ao abrir a bolsa dentro de um supermercado: tenho a sensação irracional de que algum segurança vai desconfiar que eu esteja roubando e querer me levar para a “salinha”.
No entanto, exceto a violência psicológica, eu e minha amiga não sofremos nenhum maltrato físico. Eu sei, e ela também, que só não abusaram mais da gente porque: 1) éramos brancas, 2) estávamos com o uniforme de uma escola particular e 3) a carteirinha do Clube dos Oficiais deixou o segurança intimidado. “Vai que a menina tem algum parente militar”, ele deve ter pensado.
Adulta, ao me lembrar dessa história, sempre penso que se chegasse ao meu conhecimento que um de meus filhos tivesse passado por isso, eu faria um escarcéu, iria o Conselho Tutelar, divulgaria a notícia de todas as formas. Acho que é o que faria qualquer pai e mãe que conheço, inclusive aqueles que vociferam contra o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Há alguns dias, uma imagem me deixou de tal forma chocada que primeiramente fiquei sem palavras, não consegui sequer divulgar a notícia: um jovem de quinze anos, nu, preso a um poste por uma trava de bicicleta. Fiquei sem saber o que pronunciar diante daquilo.
O pior veio depois, quando começaram as repercussões do fato: “queria ver se ele tivesse assaltado sua tia”, “estamos nas mãos desses bandidos”, “isso é porque a polícia não faz nada”, “eu até entendo a reação das pessoas que fazem isso”. Assim como na minha adolescência, a reação inicial de pavor transformou-se em raiva. Pessoas educadas, que não falam palavrão nem elevam o tom de voz, estavam a defender, num discurso muito razoável, a tortura impingida contra um menino. Uma âncora de telejornal, utilizando o privilégio da fala num horário nobre em uma emissora que por sua vez é concessão pública, conclamava os defensores dos direitos humanos a adotarem o “marginalzinho”. Tive vontade de desistir da humanidade.
Lá nas profundezas, a voz da menina de onze anos que eu fui gritava para mim: “Poderia ter sido com você!”. Novamente me lembrei da história do CB e pus-me a pensar no que teria acontecido se eu, pega no mesmo delito, o de roubar doces nas prateleiras de um supermercado, fosse negra e pobre. Talvez, ao modo dos distintos professores de educação física, tivessem pegado um pedaço de madeira para me espancar. Talvez, feito os agentes da lei na porta da escola, tivessem me amarrado pelos pés e pelas mãos. Talvez... melhor nem pensar.
Não, eu não ficaria feliz se sofresse um assalto à mão armada e ficaria muito mal se uma de minhas tias ou minha mãe sofresse ameaça de morte feita por um menor infrator. Mas isso não pode justificar que um ser humano seja submetido a um castigo cruel e degradante. Mesmo porque, estamos neste caso falando de seres humanos que já são submetidos a condições degradantes, independente de terem ou não cometido um delito. A eles, falta habitação adequada, acesso ao lazer, à instrução, aos cuidados médicos básicos e a uma escola decente. No mínimo lhes falta isso.
Além do mais, se examinarmos nossa história com um pouco de honestidade, constataremos que são pouquíssimos de nós os que nunca agiram como “menores infratores”: aqueles passaram toda a infância e adolescência sem jamais “colar” em uma prova, roubar doce no supermercado, atravessar fora da faixa de pedestre, exagerar no namoro em praça pública ou consumir bebida alcóolica antes de completar dezoito anos. Difícil, e nem sei se é desejável, chegar à idade adulta sem nunca ter cometido transgressão alguma. A diferença é para alguns, por motivos tão aleatórios quanto a cor da pele ou o bairro onde se mora, o preço a se pagar pela falta cometida é a própria dignidade.

Betzaida Tavares é historiadora e escritora. Menção honrosa no Prêmio Literário Cidade do Recife (2011), categoria Romance, com a obra O fundo e a luz. Ministra cursos voltados para a relação entre história e literatura e oficinas de produção de texto. É professora de história no Sebrae e mãe de quatro meninos.
* Este é um artigo autoral, que reflete as opiniões do colunista e não do veículo. O website BH DA MENINADA não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações, conceitos ou opiniões do (a) autor (a) ou por eventuais prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso das informações contidas no artigo.
© 2012 by Daniela Mata Machado Tavares. Todos os direitos reservados